Análise semântica pela Cultura do design

Com o objetivo de aprofundar o vocabulário estético das imagens das redes por um viés mais semântico e multidisciplinar, buscamos outras metodologias, ancoradas na linha de estudos da cultura visual e visões sistêmicas e interdisciplinares.

Este segundo vetor analítico parte do diagrama Domínios da cultura do design, concebido pelo designer e pesquisador Guy Julier (2006). E propõe uma releitura, a fim de ampliar os quesitos analíticos desta imagem complexa e informacional [Sidenote: 14. Este tema também é tratado no artigo Releitura do diagrama “Domínios da Cultura do Design” para a análise das imagens-mensagens dissidentes do Instagram, publicado nos anais do 10º Congresso Internacional de Design da Informação (CIDI), 2021.] . A linha de estudos da cultura do design (JULIER, 2006) busca complementar alguns atributos relacionados à análise da imagem, apresentando uma nova camada interpretativa à teoria da cultura visual (MIRZOEFF, 1999) – amplamente adotada no campo da iconologia no período pré-internet – aplicada em inúmeros estudos da produção artística e cultural desde o final dos anos 1970. Essa teoria foi atualizada e gerou derivações por meio do trabalho de outros pesquisadores, como Meneses (2003) e Boylan (2020). Assim, o foco principal de tais investigações está nos atributos visuais da imagem estática – composição, estrutura, perspectiva, signos e interpretação semiótica, linguagem verbal.

No artigo From visual culture to design culture, Julier (2006) faz uma revisão crítica à análise de imagem por um viés puramente “visual”, apontando o contexto informacional e social. Neste caso, a fruição estética do espectador opera como elemento de análise essencial na contemporaneidade. O autor reconhece, entretanto, a importância de questões tratadas antes por Mirzoeff (1999), como a repercussão da “virada visual” da sociedade ocidental moderna no campo do design; a relação entre o consumo de massa e a vasta produção e circulação de imagens em meados do século XX, após a segunda guerra e com o avanço industrial das reprodutibilidades técnicas. Tais imagens, de natureza mais comunicacional e comercial, apresentavam outras indicações visuais provenientes das artes e da ciência. Por isso, os novos meios de produzir e veicular arte para um mercado crescente e amador passou a exigir, desde então, mais apuro visual das peças gráficas. Ambas gradativamente mais elaboradas devido às atualizações de possibilidades de produção gráfica serializada.

O paralelo entre a evolução da linguagem visual e o desenvolvimento das possibilidades técnicas permeia a história do design, na qual a tecnologia estimula experimentações gráficas, resultando no surgimento de novas estéticas. A questão da interdependência entre evolução tecnológica e mudança de hábitos do usuário, produtor, distribuidor e consumidor de imagem e experimentações gráficas, é central para nós. As estéticas emergentes das redes e dos acontecimentos das ruas acompanham a evolução da sociedade interativa à sociedade participativa (HARVEY, 2013). E esta passagem é percebida e vivenciada por meio das imagens-mensagens. Para Julier (2006) a interdependência de tecnologias visuais, mídias convergentes e experiências simultâneas – a mesma informação visual é gerada e distribuída para plataformas diversas como câmeras celulares, de webcams, TV LED, etc. – são pontos fundamentais para entendermos a imagem digital.

Diagrama Domínios da cultura do design, de Guy Julier (2006)
Nesse diagrama, Julier (2006) incorpora o pensamento do historiador do design Victor Margolin, para quem o artefato material (ou a peça gráfica) é um objeto agregador de contexto social deve ser analisado a partir das condições dos meios de produção, das atividades e dos serviços que o envolvem (1995). A partir desta afirmação, Julier se propõe compreender, através de múltiplos artefatos da cultura do design, a dinâmica e os efeitos das relações materiais e imateriais que são articuladas por diferentes atores (designers, consumidores). As imbricações entre as relações materiais e imateriais estão sugeridas pela intersecção dos conjuntos, abrindo a outras possibilidades.

A releitura desse diagrama se deu a partir da observação do núcleo central, no qual os três domínios estão inter-relacionados (Circulação, Valor e Prática). Enxergamos um caminho interessante para uma análise semântica por este viés sistêmico. Assim, propomos uma adaptação, criando uma nomenclatura para as quatro intersecções do diagrama original, considerando estes como pontos fundamentais:
a) circulação da imagem-mensagem;
b) experiência do usuário;
c) contextualização social;
d) memória afetiva e gráfica.

 

A cultura do design e as imagens das redes: uma releitura do diagrama de Julier.

A nomenclatura proposta é baseada nos conceitos originais do autor (2006). Adaptamos os termos e nomeamos as intersecções desses domínios com o objetivo de oferecer subsídios para a leitura sistêmica das imagens-mensagens das redes.

Podemos associar o domínio Circulação aos atributos relacionados à reprodutibilidade técnica da peça gráfica. No ambiente digital das redes, a reprodutibilidade é infinita, pois as postagens são repostadas pelos usuários e deslocadas para outros contextos, diferentes daqueles em que foram originalmente criadas para circular. Como vimos no tópico #ativismo: das ruas para as redes, o uso de estratégias de tagueamentos provoca um deslocamento e novas possibilidades de inserção de uma mesma imagem em diferentes narrativas. Essa imagem está em constante transformação e sujeita à interação e interpretação do usuário, à sua experiência da “visualidade” do fluxo das imagens nas redes. A estética da narrativa, assim como a estrutura visual da imagem e o seu entendimento, parece oscilar de acordo com essas combinações de dados e de ações colaborativas por parte dos espectadores-autores-artistas participativos (PAUL, 2011). Os recursos tecnológicos dos próprios aplicativos nos quais as imagens circulam – o Instagram, no presente caso – também motivam e “seduzem” o usuário a produzir e editar imagens no próprio aplicativo, onde é possível usar uma série de filtros que influenciam a estética “fast food” de certos posts e permitem o acesso e participação de todo o público da rede na produção estética ativista.

 

Participação do usuário

Na análise das imagens-mensagens, a participação do usuário, seu engajamento, likes e repostagens com novas palavras-chaves, representa uma parte fundamental no diagrama, na intersecção entre Circulação e Prática (figura acima). As questões relacionadas à interação do espectador levantam outros fenômenos igualmente relevantes, como a diluição do autor, a apropriação de imagens de outras fontes e os jogos de linguagem. São outros regimes de visibilidade, como pode ser visto por meio de outros autores do campo da filosofia, da história da arte e da artemídia, como Rancière, Didi-Huberman, Grau, Grusin, entre outros, no Glossário Imageria.

 

O domínio da Prática considera a ação e a recepção dos artefatos materiais. Contempla todos os criativos que concebem sua arte para circular nas redes: designers, artistas, cidadãos que, envolvidos com os acontecimentos políticos, criam estratégias de linguagem para se comunicarem por meio da imagem. Para nós, este domínio também inclui a atividade do usuário do Instagram, que se identifica com a causa e com a estética do card, se apropria da imagem, acrescenta-lhe novas informações ou elementos visuais e volta a postá-la. Essa prática do receptor faz com que ele se torne o ator de uma nova ação – ação essa que contribui para a estética desses posts com acréscimos de frases, ilustrações ou apenas novos significados à medida que são deslocados e colocados em circulação em um outro contexto. Como vimos com Navas (2016), a adição de imagens de diversas fontes, em umremix de imagens apropriadas, caracteriza a prática da produção estética para as redes.

 

Novas estéticas

A estratégia de colagem, justaposição de dados temporais e apropriação explícita de imagens ocorre desde a pop arte e foi amplamente apropriada pelo movimento punk no final dos anos 1970, ganhando força novamente no mundo digital pela facilidade do acesso às citações iconográficas na web. As novas formas de produção de linguagem, a justaposição e fusão de elementos visuais de diferentes fontes dão origem às fake images, imagens ficcionais. Colaboração e coletividade caracterizam esse processo criativo, exemplificado pela prática ativista de movimentos coletivos organizados em torno de hashtags temáticas como “ele não”, “me too”, “marielle presente”, “fora garimpo fora covid”, “aquecimento global”, “vidas negras importam”, para citar apenas algumas.

Essa produção dissidente é entendida como uma prática estética, uma produção de linguagem que responde aos anseios de criadores, consumidores/espectadores e cidadãos informatizados que participam e se comunicam por meio da rede Instagram.

 

Contexto sociopolítico

No domínio Valor, podemos analisar todo o contexto sociopolítico no qual essas imagens-mensagens são criadas. O lado mais antropológico da análise deste tipo de imagem não está inscrito, não se “vê”, mas está implícito nos seus signos pictóricos, verbais ou formais. Cabe mencionar que Julier (2006) critica o ocularcentrismo da cultura visual de Mirzoeff (1999), que, apesar de considerar o contexto sociocultural, se limita a analisar estritamente o que se vê, se abstendo de interpretações interdisciplinares. Nesse domínio, constatamos a construção de uma identidade coletiva e a rede como ambiente propício para levantes ativistas. São valores individuais e coletivos, que expressam a ancestralidade, a cultura e a origem do artista/autor do card, assim como suas afinidades políticas, estéticas e sociais.

 

Memória

É no cruzamento dessas das dimensões Valor e Prática que conseguimos interpretar aspectos ligados à memória da imagem – seja a memória de acontecimentos factuais e históricos e de personalidades icônicas relacionadas a esses fatos, seja a memória afetiva do espectador, evocada pela imagem e relacionada às experiências pessoais. Além disso, há a associação semântica e visual que fazemos com outras peças de design gráfico que marcam nosso imaginário, apresentadas no tópico Narrativas visuais no Instagram.

Incluir a memória em análises imagéticas nos permite agregar o componente subjetivo e fenomenológico destacado por Mirzoeff (1999) e Beiguelman (2019), que pode estar associado a outras simbologias e experiências afetivas. A memória também influencia quem faz a análise do objeto (o pesquisador) ou quem cria a peça gráfica. E afeta o receptor, quem vê e consome a imagem.

 

Identidade e novas estéticas

Denominamos o coração do diagrama como a imagem-mensagem, constituída pelas intersecções entre os domínios e subdomínios apresentados. As linguagens visuais emergentes nas redes são marcadas pelo uso da ilustração vetorial, da colagem de fotografias e de desenhos manuais, além da apropriação de imagens documentais de outros períodos históricos para representar temas afins. Veremos exemplos dessas imagens-mensagens a seguir.

 

Análise das Imagens-mensagens

Os paradigmas trazidos por Julier (2006) nos permite fazer uma análise semântica sistêmica. Há uma série de fatores não explícitos no objeto material analisado. A tal respeito, o designer e pesquisador catalão Henri Jardí (2014) propõe o gesto de pensar com as imagens, adicionando outros quesitos à leitura de ilustrações digitais. Para tanto, o autor se utiliza da visão ampliada de ícones, índices e símbolos, definida a partir dos conceitos semióticos de Peirce (2000).

As relações entre signo e objeto permeiam as leituras de como vemos peças gráficas como cartazes na paisagem urbana e nas redes, cotidianamente. A ilustração, em relação a fotografia, possui índices mais baixos de iconicidade e depende de uma série de características que a torne identificável como determinado objeto (JARDI, 2014, p. 7). Nas peças de design de comunicação denominadas aqui como imagens-mensagens, nos deparamos com diversas estratégias visuais, textuais e formais, contendo uma mistura de linguagens que nos inspira a amplificar a análise da imagem da rede de uma forma plural e sistêmica.

A contribuição de ambos os autores orientou a nossa análise semântica e contextual aplicada em cinco imagens-mensagens caracterizadas como “ilustração digital”. Como vimos no tópico anterior, o uso de aprendizagem de máquina pôde ampliar quantitativamente a coleta de dados e a classificação de imagens, sendo a “Ilustração digital” a categoria estética predominante. Este resultado contribuiu para esta etapa de análise qualitativa e corresponde a um dos achados da pesquisa: a ilustração digital pode ser considerada a categoria mais representativa das estéticas emergentes das redes, pela lente do design.

Apresentaremos a seguir um exercício de leitura de cinco peças gráficas. Essa pequena amostra levou em consideração a diversidade de linguagens e experimentações gráficas que essas contêm – quão diversa pode ser a solução formal de uma ilustração digital. A combinação de diferentes técnicas (colagem, traços manuais digitalizados, uso de fotografias e patterns) e o uso da linguagem verbal na composição formal dessas peças representam a potência das novas estéticas emergentes nas redes. Além disso, as imagens foram extraídas de diferentes hashtags e representam o design de comunicação de diferentes causas ativistas.

Imagem capturada da hashtag #elenao, publicada em 17 de outubro de 2018. Autor: Eduardo Foresti @foresti.

 

Na figura acima, a imagem capturada da hashtag #elenao, publicada em 17 de outubro de 2018, representa a onda de extrema direita bolsonarista. A bandeira do Brasil invertida serve de carapuça, uma remissão explícita aos capuzes cônicos usados pelos membros da Ku Klux Klan, organização norte-americana de supremacistas brancos. [Sidenote: 15. Ku Klux Klan é uma organização terrorista norte americana criada por supremacistas brancos em 1865, depois da Guerra Civil, com o objetivo de perseguir e assassinar negros. A organização chegou a ter mais de 2 milhões de membros nos anos 1920 e é atuante até hoje, embora o movimento tenha se transformado em outros grupos radicais (Silva, 2022).] O uso da técnica de colagem – os olhos de Bolsonaro recortados de uma publicação impressa em preto e branco (com uma retícula particular às imagens reproduzidas de jornais) – realça o contexto factual e documental do cartazete. O deslocamento do uso da bandeira com outra função reforça a estratégia de jogos linguísticos mais sofisticados, presentes em outras imagens-mensagens nas quais a bandeira é um signo empregado de forma a expressar outros significados que vão além do sentido imediato. Esse modo de representação é conhecido como retórica visual. Alterou-se o contexto no qual a bandeira é usada habitualmente para modificar seu significado literal de um símbolo do conjunto da peça gráfica. No caso desta imagem, precisamente, podemos dizer que ela é uma metonímia. A figura (bandeira) é usada para modificar o significado literal de um signo, substituindo por outro elemento visual (chapéu/capuz) com o qual passa a ser relacionado (Jardi, 2014). Ver imagem metonímica. A apropriação de um símbolo nacional, usado de ponta cabeça, contribui para o impacto visual da imagem: “quando escolhemos um determinado símbolo para expressar uma mensagem, devemos ter certeza de que conhecemos o âmbito cultural no qual se movem aqueles a quem nos dirigimos”, alerta Jardi. É provável que muitos leitores não compreenderam a metáfora do capuz cônico relacionando-a com o posicionamento político racista e nazista do presidente Bolsonaro.

A relação entre Imagem e design e a interpretação dos signos visuais acontecem de forma inconsciente. Pode ser percebida em camadas. Outra associação possível a esta figura remete ao símbolo do chapeuzinho triangular feito de papel nas brincadeiras infantis nos anos 70, período da ditadura, imortalizado na música “marcha soldado cabeça de papel”. São novos significados que surgem em um outro nível de leitura. São novos significados que surgem em outras camadas de leitura.

Imagem capturada das hashtags #mariellepresente e #designativista, publicada em 14 de março de 2019. Autor: Cris Vector @crisvector.

A figura acima foi capturada pelas hashtags #mariellepresente e #designativista e traz o retrato de Marielle. Segue a mesma linguagem do cartaz que marcou a campanha de Barack Obama nas eleições americanas em 2008, desenhado pelo ilustrador e ativista Shepard Fairey. Esta peça gráfica é usada como referência de linguagem de ilustração e a estrutura da composição segue o mesmo padrão de diversos cartazes ilustrados com retratos de grandes personalidades políticas. A área inferior é destinada à linguagem verbal. Nesse caso, utilizaram-se letras da categoria display, condensadas e em caixa-alta, disponíveis no template do Instagram. O uso da pergunta em cartazes é uma estratégia usada desde os cartazes dos anos 60, como ilustrado na galeria Design de impacto. A frase se dirige ao receptor, provoca e evoca a participação. A imagem viralizou e foi apropriada em milhares de outros posts sobre Marielle.

Este estilo de ilustração vetorial na qual o volume se dá por camadas de gradientes e sombras é um estilo marcante na rede. Cris Vector, um dos ilustradores que se destacou nas redes pela sua habilidade e precisão de detalhes, também representa uma vertente importante do design da rede na qual a combinação de imagem e linguagem verbal se funde em uma única composição.

Imagem capturada da hashtag #desenhospelademocracia, publicada em 16 de outubro de 18. Autor: Bijari @bijari.

A figura acima faz uma paródia da frase “mais amor, por favor”, letra de música sobre violência nas ruas da banda Preto no Branco (2016), a qual utiliza-se da linguagem verbal como elemento principal. O card explora tipograficamente questões binárias e faz parte de uma série de imagens ativistas cujo design é explicitamente inspirado no design gráfico dos cartazes tipográficos suíços. O estilo suíço é conhecido pela valorização do uso da tipografia sem serifa, como a Univers, a fonte democrática desenhada pelo designer suíço e professor da Bauhaus Adrian Frutiger em 1957, no pós-guerra. A tipografia Univers consiste em um sistema numérico bidimensional com diversos pesos e estilos de fontes, ampliando as possibilidades das classificações tradicionais (light, regular e bold).

A interferência digital das marcas de tiro na palavra “arma” representa a ação da violência das armas de fogo e pode ser percebida em um segundo momento. A peça gráfica mescla linguagens tradicionais do cartaz ativista com a contemporaneidade da ilustração digital. O jogo de escalas dos dizeres “menos e mais” e as palavras “armas e amor” contribui na composição dos elementos da peça, trazendo um ritmo à leitura, apresentada em dois níveis.

Imagem capturada da hashtag #designativista, publicada em 15 de fevereiro de 2019. Autor: Gladson Targa @gladsontarga.

A imagem-mensagem acima faz uso da ironia para tratar do racismo e da brutalidade do assassinato de um jovem negro de 19 anos, morto pelo segurança do Hipermercado Extra na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, naquele dia. A peça gráfica se apropria da estrutura e da linguagem tipográfica dos cartazes de ofertas de produtos em supermercados e lojas populares, utilizando uma tipografia vernacular para o “anúncio”. Utilizando uma linguagem visual direta mais popular e, portanto, mais acessível, essa peça se insere em símbolos de determinada “conotação” (JARDÍ, 2014). A ilustração é facilmente compreendida e se refere à venda, como se a carne preta não valesse nada. Esse lugar-comum da ilustração tem uma amplitude relacionada ao âmbito cultural de determinado cenário, compreendido, nesse caso, globalmente.

Imagem capturada da hashtag #designativista, publicada em 19 de abril de 2019, data comemorativa do Dia do Índio. Autor: Mavi Morais @moraismavi.

A figura acima é um bom exemplo das múltiplas linguagens utilizadas pelos artistas gráficos: a figura central é uma apropriação de uma fotografia em preto e branco de um índio (autor desconhecido/não fornecido), recortada e retrabalhada, com uma colagem de outros elementos fotográficos alegóricos, como o cocar e as bananeiras que compõem o cenário. Essas figuras adicionadas e somadas são explícitas e representam o estereótipo do contexto cultural local. O fundo é composto por uma ilustração vetorial, uma estampa de padronagem étnica indígena, adicionando mais um índice visual.

É interessante observar que a leitura dessa imagem pelas visões computacionais dos nossos classificadores gerou uma leitura ambígua. O robô também não consegue identificar os elementos de múltiplas linguagens que compõem a imagem. A interpretação pelo modelo de rede neural pelo MMD Critic (KIM et al. 2016) gera uma “imagem crítica”, como podemos ver em Aprendizagem de máquina e subjetividade.

Ao propor a releitura do diagrama de Julier – interpretando os elementos analíticos da cultura do design e atribuindo novos significados possíveis às intersecções do diagrama – estabeleceram-se parâmetros para o estudo das imagens que circulam nas redes sociais. Neste caso, o diagrama foi adaptado para ancorar os aspectos mais subjetivos e contextuais relacionados às imagens dissidentes do Instagram. Tais imagens, lidas pela lente do design de comunicação, careciam de uma análise interdisciplinar que abarcasse outros aspectos inerentes a esses artefatos gráficos.

A releitura deste diagrama acrescenta novas chaves interpretativas e sugere a possibilidade de uma leitura das peças gráficas que vão além dos aspectos formais e visuais. Essa abordagem procura discutir os signos invisíveis perceptíveis pelo criador/emissor e pelo receptor. São elementos simbólicos a serem decifrados a partir do repertório de cada um. Ela não exclui outras metodologias de análise semiótica, mas assume a imbricação dos campos no qual produzimos e consumimos design hoje, oferecendo outros subsídios para o entendimento desses artefatos gráficos.

 

A tela e o tempo presente

Ao fazer o exercício analítico dessas cinco imagens a partir dos pré-requisitos apresentados, notamos que essa abordagem sistêmica escapa dos quesitos propostos pelas análises gráficas mais tradicionais, pensadas a partir de uma concepção formal e estática, com um grid preestabelecido – herança dos dogmas projetuais do design moderno. A releitura do diagrama de Julier (2006) possibilita irmos além, pois notamos que numa mesma peça gráfica é possível identificar um emaranhado de tempo de influências visuais e estilísticas, plasmadas em uma mesma imagem de formato reduzido.

Essas criações podem ser consideradas uma peça em constante transformação, devido à participação do usuário e sua circulação (com legendas/hashtags que os deslocam nas redes). À luz de práticas de produção gráfica dissidentes, representam uma evolução cultural, contextual e tecnológica dos cartazes dissidentes produzidos mundialmente em outros períodos da história.

Na galeria Design de impacto oferecemos um breve panorama dessa arqueologia de narrativas dissidentes através de cartazes criados por meio de técnicas distintas de produção e reprodução. Essas peças gráficas nos ajudam a refletir sobre o quanto a tecnologia e a facilidade de produção e uso de ferramentas de criação e edição, disponíveis nos smatphones ou nos computadores, impactam na estética das redes.

Ao olhar essas imagens pela cultura do design, verificamos que o uso de múltiplas linguagens, colagens, apropriações e releituras remixadas são pensadas e articuladas para veicularem em uma superfície plana e bidimensional: a tela luminosa do celular.

Essa materialidade e luminosidade da tela também interfere na recepção da imagem, no modo em que a olhamos. E de certa maneira, restringe nossos sentidos hápticos promovidos pelas texturas das serigrafias, stencils, tintas e colagens impressas sobre a interface material do papel. Como vimos com Paul (2011) e Menkman (2020), a tela é um elemento que interfere como mediadora da luz da imagem digital. E as plataformas de redes sociais definem alguns quesitos de resolução que alteram a essência da peça gráfica original. São novas políticas e novos modos de ver, que independem da relação homem-objeto.

De todo modo, a conversão da visualidade dos cartazes da galeria Design de impacto para a tela também funciona. Temos acesso a peças gráficas raras, produzidas em momentos históricos delicados e em lugares distantes. Com a digitalização, esses cartazes estão aqui, reproduzidos, plasmados e padronizados na mesma superfície luminosa.

A tela e o hábito do usuário de olhar para as imagens no Instagram em um contínuo scroll vertical também influenciam a experiência estética e, de certa forma, favorece esse emaranhamento das apropriações de imagens, como vimos com a fotografia de Angela Davis e com a obra de Warhol. É como se a tela fixasse essas imagens em um eterno tempo presente, mas que tende a desaparecer no próximo movimento de seu polegar.

A imagem-mensagem é efêmera e, nesse sentido, seu vocabulário estético tende a seguir esse mesmo comportamento cíclico. Esta é uma questão sobre a a qual não se pode afirmar uma resposta, apenas apontar caminhos.